O Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) foi criado com o intuito de abrigar atletas durante os Jogos Pan-Americanos, em 1963, e posteriormente servir como moradia para estudantes da Universidade de São Paulo (USP). Entretanto, somente após lutas duras estudantis que culminaram na ocupação do Bloco A pelos alunos foi possível a conquista do Conjunto como morada.
O direito à moradia universitária, parte da permanência estudantil, desde o início de sua implantação no CRUSP e a partir de então, passa por uma série de contradições. O projeto do Conjunto Residencial, inicialmente de seis blocos, ampliou-se para doze, mantendo, porém, o orçamento inicial. Isso refletiu em inadequação de infraestrutura, sentida pelos estudantes no dia a dia. Nos anos seguintes, mesmo em meio a tantas dificuldades, os alunos utilizaram a moradia como espaço de resistência, de contínuo debate político e cultural, promovendo assembleias do movimento estudantil em resposta ao aumento da repressão e censura durante a ditadura civilmilitar. Na madrugada de 17 de dezembro de 1968, quatro dias após o decreto do Ato Institucional nº 5, forças repressivas do estado invadiram o CRUSP com tanques do exército e soldados, episódio que resultou na prisão de cerca de 800 estudantes e na obtenção de informações acerca do movimento estudantil da época. A retomada do Conjunto Residencial em 1979, 10 anos após o seu fechamento, se deu de forma lenta e progressiva, recebendo inicialmente pós-graduandos e posteriormente alunos da graduação.
Mais de 40 anos depois, os moradores do CRUSP experienciam realidade infelizmente muito semelhante. Cerca de 1.600 estudantes em vulnerabilidade social residem atualmente no Conjunto, em apartamentos de 25 metros quadrados, com inúmeras rachaduras, infiltrações, vazamentos, riscos de incêndio, precárias condições de higiene, dificuldades de acesso para alimentação nos bandejões, sem rede de acesso à internet. A estrutura precarizada e o subfinanciamento para sua manutenção e ampliação, que são uma realidade desde a sua inauguração, são agravadas com as medidas de isolamento decorrentes da pandemia pela COVID-19. Nesse cenário, os problemas crônicos do CRUSP ganham outros contornos, dificultando ainda mais a permanência estudantil e colocando os estudantes em situação de risco todos os dias.
Nesse contexto, situações básicas, como o direito de acesso ao alimento, ficam comprometidas. Com o fechamento dos Restaurantes Universitários por conta da pandemia e sem uma política efetiva e direcionada para garantir a alimentação dos estudantes residentes do local, muitos relatam desespero. Nem mesmo as cozinhas do CRUSP podem ser utilizadas sem colocar a segurança dos estudantes em risco, visto que estas se encontram desestruturadas, com danos nas instalações elétricas e de gás.
O direito à saúde, na moradia estudantil de uma das maiores universidades da América Latina, também é comprometido. O Hospital Universitário, principal referência para o atendimento de saúde dos moradores do CRUSP, funciona aquém da sua capacidade, devido ao intenso processo de sucateamento decorrente do subfinanciamento ao qual está exposto. Além disso, os moradores, que permanecem com suas demandas em relação à assistência médica, dependem de transporte público para chegar ao HU, o que presume quebra do isolamento em meio à pandemia, expondo-os à possível contaminação e disseminação do coronavírus. Segundo os alunos, nenhuma assistência local à saúde ou maiores orientações são devidamente oferecidas pela USP para solucionar este problema.
A quebra de direitos é estendida também à própria educação. Com a suspensão das aulas presenciais, toda a Universidade iniciou a adoção de modalidades de ensino remotas por meio de tecnologias de informação. No entanto, nem todos os estudantes possuem acesso a computadores. Mesmo os que possuem, encontram dificuldades para conexão: pela ausência de cabeamento de internet no CRUSP, precisam ir até uma praça para ter acesso às atividades online – o que invalida o próprio motivo de estarem isolados, aumentando as chances de contraírem a COVID-19. Ademais, com a suspensão das atividades das creches e escolas, a situação fica muito mais complicada para as alunas que possuem filhos, as quais não contam com nenhuma estrutura de suporte e lidam com a quarentena de seus filhos, não conseguindo se deslocar e deixá-los sozinhos para obter acesso à internet e à sua jornada acadêmica, ou precisando levá-los consigo, expondo-os a maior risco de contaminação. Se reafirmam nesse contexto as desigualdades de acesso ao ensino, uma vez que as condições mínimas para aplicação de uma modalidade remota de educação – como ambiente de estudos, computador e, sobretudo, internet – não são garantidos pela Universidade.
O artigo 206° da Constituição Federal de 1988, determina que o ensino deve ser ministrado com base em alguns princípios, dentre eles no inciso 1° “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. A Lei N° 9.394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 3º, reforça que o ensino será ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência. Em 2008, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado por lei, e deveria garantir, além da assistência à moradia estudantil, a alimentação, transporte, saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche e apoio pedagógico aos estudantes de ensino superior socioeconomicamente vulneráveis. Ainda assim, em 2018, o reitor da USP, ao ser questionado sobre auxílio aos cotistas, disse que a Instituição não é uma entidade assistencialista.
Este negligenciamento da permanência estudantil, exemplificado no contexto do CRUSP, mas usualmente implementado nas políticas do próprio Estado, culmina na não democratização verdadeira do ensino, uma vez que o acesso ao ensino superior descolado da garantia de direitos básicos, especialmente para estudantes socioeconomicamente mais vulneráveis, apenas reproduz e mantém as desigualdades sociais existentes. Isso se agrava quando falamos de um grupo de mães, muitas vezes as únicas responsáveis por seus filhos, em uma sociedade patriarcal e machista. Há pouco tempo as mulheres conquistaram o direito de acesso ao ensino superior. Ainda assim, permanecem lutando não só para garantir a manutenção deste direito, mas também contra políticas que ignoram o fato de que mães também podem ser alunas.
A crise política, econômica e social atual desvela e exacerba um conjunto de contradições estruturais de uma sociedade que coloca o lucro acima da vida. A precarização das políticas de permanência estudantil foi reforçada pela Emenda Constitucional 95 de 2016, também denominada “EC da morte”, justamente por congelar o orçamento com direitos sociais – como educação – desfinanciando, assim, o já subfinanciado ensino público, e ignorando as necessidades dos alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica – seja no ensino público ou daqueles inseridos no ensino privado por meio de programas como o ProUni e o FIES – que se vêem forçados a evadir do ensino superior devido aos cortes de bolsas e financiamentos estudantis, acarretando em perpetuação da desigualdade socioeconômica, e, como constantemente presenciado pelos alunos e alunas, em marginalização à acessibilidade e à continuidade da graduação.
O cenário vivenciado pelos moradores do CRUSP mostra que a violência do Estado de 1968 permanece e ganha forma na pandemia com políticas públicas que priorizam a economia e negligenciam a vida, especialmente de mães, negros e negras, e trabalhadores. Faz-se necessário, nesse cenário, exigir que a Universidade tome medidas enérgicas no sentido de garantir condições mínimas de sobrevivência para os estudantes moradores do CRUSP, dentre elas: distribuição de marmitas e/ou cestas básicas para todos os moradores; implementação de reformas básicas emergenciais, deixando cozinhas adequadas para o uso seguro; contratação de trabalhadores da saúde para o HU que garantam atendimento domiciliar aos moradores; suspensão das atividades domiciliares e implementação de rede de internet nos blocos do CRUSP; distribuição de kits de higiene e produtos de limpeza para todos. Contudo, reitera-se a complexidade do cenário histórico de negligência à permanência estudantil, situação exemplificada pela USP mas que é sabidamente realidade em diferentes Universidades do Brasil. A DENEM defende a luta por uma educação totalmente pública e de qualidade, de acesso universal, crítica e emancipadora da classe trabalhadora, e reitera que isso perpassa a garantia do acesso a direitos básicos como a permanência estudantil a todos os estudantes.
Nota conjunta da DENEM com a Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.