Extensão Universitária

FALANDO DE ABORTO COM A SOCIEDADE SOB A PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO POPULAR No ratings yet.

Enquanto estudantes que queremos, através da Extensão Universitária, atuar nas comunidades sob a perspectiva da educação popular, devemos sempre olhar para além do fenômeno apresentado, entendendo que ações pontuais e assistenciais são sim muito importantes e necessárias para uma comunidade, mas se não rompermos com aquilo que está por trás daquelas condições opressoras, apenas estaremos acobertando um problema que logo irá se apresentar novamente (às vezes se apresentando de outra forma). Ter clareza do processo histórico, das determinações que geram as condições que oprimem os trabalhadores, da forma como nossa sociedade capitalista funciona e superá-la é que trará empoderamento e força para que esses trabalhadores lutem não só por seus direitos mas por sua plena emancipação ao romper com esse sistema opressor.

Quando falamos em Educação Popular, sob a perspectiva marxista, estamos falando justamente disso: evidenciar as contradições da nossa sociedade, rompendo com o senso comum, a fim de contribuir para um avanço de consciência na classe trabalhadora. Para isto, é necessário teoria, para que aquela comunidade entenda porque esse modelo de sociedade produz essas condições e esteja ciente do seu sujeito histórico, mobilizada e instrumentalizada para lutar contra esse sistema.

Assim, trabalhar a temática do aborto junto à sociedade não é simples. Embora a legalização ou criminalização do aborto possa parecer meramente uma questão jurídica, se olharmos para além dessa questão pontual, iremos esbarrar em diversas outras contradições que envolvem a forma como nossa sociedade se estrutura e os mecanismos ideológicos pelos quais sustentam essa sociedade, como igreja, mídia, educação etc.

A criminalização do aborto é apenas uma das formas de controle sobre o corpo e a vida das mulheres na nossa sociedade que nos acorrenta a uma vivência opressora. As violências contra a mulher na nossa sociedade são gritantes, são estatísticas, embora o senso comum ainda afirme que hoje a mulher possui os mesmos direito que os homens. Somos não só obrigadas a conviver com esse sistema patriarcal mas também a acreditar como sendo algo “natural” da evolução humana.

A forma como agimos, pensamos e nos comportamos está intimamente ligada ao modelo de sociedade que vivemos. Em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, o autor, Friedrich Engels, não apenas mostra como o sistema patriarcal não é unanime, atemporal e universal, como constata que o patriarcado tem origem concomitante e consequente à origem da propriedade privada. Antes do patriarcado, as pessoas viviam em relação não monogâmicas, ocorriam casamentos por grupos, fazendo com que os filhos fossem comuns ao grupo, não sendo possível estabelecer a paternidade dos filhos. Nesse período a mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem igualmente a todas as mulheres. Não existia a prática da mulher como escrava do homem. A partir do momento em que surge a propriedade privada e, assim, a necessidade de herdeiros para suas posses, era necessário que o homem tivesse certeza de quem era seus herdeiros. Com a necessidade de assegurar a fidelidade da mulher a fim de assegurar a paternidade, a mulher passa a ser entregue ao poder do homem, transformada em servidora, confinada no ambiente doméstico e excluída do convívio social. Parece atual, não é mesmo?

“A mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e em mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado”. [A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Friedrich Engels]

Para assegurar essa estrutura social é necessário instrumentos ideológicos que naturalizem essas relações. A igreja, a mídia, a escola, a política… a LEGISLAÇÃO! As leis, que nos parecem tão neutras e universais, são instrumentos ideológicos. São essas leis que criminalizam movimentos sociais, que matam negros e pobres e que dão a liberdade de escolha às mulheres pobres: maternidade indesejada (que pode trazer repercussões drásticas na vida dessa mulher) ou a morte através do aborto clandestino.

Outro recorte importante para evidenciar sobre a questão do aborto quando temos o objetivo de ir além do senso comum é mostrar para quem serve essa legislação. Hoje, realizar o aborto clandestino de forma segura é muito simples, basta pagar por isso. Na nossa sociedade do capital, são as mulheres pobres que querem abortar que morrem, ora em casa, ora negligenciadas no sistema de saúde.

Mesmo quando o aborto deveria ser legal, como em casos de vítimas de estupro, a mulher pobre não conseguirá facilmente e sem danos psicológicos realizar tal aborto. Muitas instituições públicas se negam a realizar o aborto legal, as que realizam ainda acreditam ser preciso o BO ou autorização judicial para executar o aborto, apesar de não haver mais essa obrigatoriedade desde 2005. Quando a mulher vítima de estupro quer realizar o aborto legal, ela é submetida a verdadeiros inquéritos, que “investiga a verdade do acontecimento da violência e produz os sentidos para a definição da subjetividade da mulher como vítima” (DINIZ, Debora et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. 2014.). Como normalmente não há o flagrante da cena de estupro é necessário acreditar no que a mulher vítima diz. Porém, durante todo o processo e principalmente nessas entrevistas há um regime de suspeição sempre presente, no qual a mulher sempre é suspeita de estar mentindo sobre a violência a que foi submetida.

Além disso tudo, é interessante quando comparamos a falta de responsabilização jurídica do homem na gestação e criação de um filho. Segundo dado do Conselho Nacional de Justiça há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. O que podemos chamar de “aborto” masculino. Claro que tecnicamente não é um aborto, mas enquanto os homens facilmente se livram da responsabilidade de criar um filho (eles nem sequer são obrigados a fazerem exame de DNA para comprovar a paternidade), a mulher é obrigada a manter a gestação e sofrer todas as repercurssões que ela pode trazer.

Como saída muitos falam que a mulher pode colocar a criança para adoção, como se fosse uma decisão tranquila e não mais um problema (principalmente para a criança). Como está o sistema de adoção de crianças hoje? Quantas crianças esperam na fila para adoção? Vale ressaltar que cerca de 1/3 dos pretendentes para adoção só aceitam crianças brancas. É óbvio que não é solução para uma determinada problemática apenas transferi-la de cenário.

Por fim, é importante salientar que a questão do aborto não será resolvida através da metafísica. Tentar argumentar com a população sobre perguntas como “o que é uma pessoa?”, “quando a vida humama começa”, “quando o feto pode ser considerado uma pessoa”, ou com argumentos religiosos é criar novos problemas e nenhuma resolução. É bem comum as discussões girarem em torno desses aspectos, pois é interessante para aqueles que desejam criminalizar o aborto não evidenciar os aspectos jurídicos, políticos, econômicos e sociais da questão, uma vez que debruçar sobres essas questões nos trazem a uma conclusão lógica e inevitável: a criminalização do aborto é instrumento ideológico que cerceia as escolhas da mulher, é instrumento de extermínio das mulheres pobres, é instrumento que gera iniquidades e resulta em violência, é instrumento de opressão de gênero e, sobretudo, de classe. Deve-se deixar claro que questões morais e religiosas competem à escolha e decisão individual. O Estado é laico e a legislação sobre o aborto é algo que afeta toda a sociedade e então não deve ser debatida majoritariamente em cima de discussões morais e religiosas.

Você é contra ou a favor do aborto? Isso é uma questão falsa que nos é colocada para construirmos um falso consenso sobre a resposta. Portanto, devemos fugir dessa questão. O que devemos construir com a sociedade, como estudantes que têm acesso à universidade, é o debate de quais são as determinações que nos trazem a essa questão? Por que abortamos? Por que estamos aqui decidindo se a mulher pode ou não escolher a maternidade? Como nossa sociedade patriarcal surgiu e a quem ela serve? O que a criminalização do aborto traz de repercussões sociais, econômicas e políticas? Como estamos vendo a questão da saúde da mulher? É possível plena emancipação das mulheres na nossa sociedade atual? Lutar pela legalização do aborto é uma vitória, mas é a solução para a opressão da mulher? Quais devem ser nossas bandeiras de luta?

Assim, trabalhar com educação popular revolucionária junto a uma comunidade é identificar as problemáticas que sofrem, trazer os elementos teóricos e os instrumentos que possibilitarão a compreensão dos determinantes daquela opressão, para que a luta não fique na superfície do problema, nem seja restritra a um determinado grupo, mas que busque a superação de um sistema desigual e opressor.

Yvana Hafizza Snege de Carvalho
(Coordenadora de Extensão Universitária – DENEM 2015)

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