No dia 29 de janeiro é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans*. A data comemorativa foi criada em 2004 e celebra a luta pelos direitos humanos e respeito à identidade de gênero e a busca do direito à vida sem preconceito e discriminação. É um dia que mesmo para a comunidade LGBT tem pouco destaque pela própria invisibilidade que paira sobre essa população.
Ainda hoje a população trans têm grande dificuldade no acesso à educação, saúde e trabalho, além de serem vítimas diárias de violência e preconceito por parte da sociedade. Um exemplo disso é o relatório divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEU), que coloca o Brasil como o país que mais mata travestis e transgêneros no mundo.
Até essa mesma data do ano passado, 50 pessoas trans foram assassinadas, crimes esses com requintes de ódio e crueldade, mostrando que apesar de alguns avanços alcançados ainda se tem muita luta pela frente. À luz dessas considerações, vemos que a porcentagem de mortes cresceu 22% em um ano (2015 – 2016). Soma-se a isso, ainda, as oportunidades de empregos escassas, a exclusão familiar e social, a falta de políticas públicas e o conservadorismo.
Tudo corrobora para a vulnerabilidade social, além de respaldar um mercado de trabalho que se limita, para a grande maioria, à informalidade e à prostituição.
Assim, nota-se que esses parâmetros ratificam um cenário no qual a expectativa de vida da população trans* é de apenas 35 anos. Apesar de muito se dizer que vivemos em um país laico, é fácil constatar que a sociedade porta-se de maneira conservadora e religiosa, o que molda suas ações e pensamentos. Desse modo, ela trata com intolerância e com desrespeito não só as identidades de gênero, mas também as orientações sexuais heterodivergentes. Entendendo que essa conjuntura se funda na cisnormatividade e na heteronormatividade compulsórias consolidadas na sociedade ocidental, fica fácil entender os reflexos da total invisibilidade sobre a vida dessas pessoas.
No cenário das escolas médicas vemos que a ausência do debate sobre gênero associada a um histórico de patologização das identidades trans* corrobora para uma formação extremamente problemática dos profissionais de saúde. É de conhecimento de todo estudante de medicina que mal se fala da existência de pessoas transgênero em nossos currículos e quando se fala, com um ranço histórico eugenista, só se discutem questões psiquiátricas – bem no viés da patologização consolidado na psiquiatria contemporânea. A existência dessas pessoas sempre é encarada como anormal, fundamentada numa análise superficial do que é gênero e ratificada pelo pensamento organicista de que sexo biológico seria uma característica intrínseca e natural dos seres humanos e definidora de gênero. Mas o que não se fala é que esse critério normativo retira da normalidade cerca de 2% da população mundial: pessoas intersexo que não seguem esses dimorfismos idolatrados dentro da medicina.
A invisibilidade se consolida nas graduações de saúde quando colocamos como sinônimo de ginecologia a saúde da mulher, ignorando a existência de homens trans, ou ainda quando colocamos em nossas conversas interpessoais o sexo com penetração como “sexo heterossexual”. Nada se fala da fisiologia dos corpos trans*, nem mesmo quais são os impactos da hormônio-terapia sobre esses corpos. Os profissionais de saúde que estão sendo formados, e que vão atuar na ponta com essas pessoas, são confortavelmente ignorantes a respeito de qualquer debate sobre gênero e muitas vezes mal sabem como se referir a mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas não-binárias.
Descartamos todo o acúmulo da antropologia sobre a temática e continuamos a tratar gênero como algo dicotômico, dialogando com o modelo oferecido pelo “processo transexualizador” no SUS que oferece um modelo de acompanhamento pensado para “adequar” corpos, não entendendo que não são os corpos das trans* que estão desadequados, mas sim a cisnormatividade que afronta a existência de toda uma população. Para além disso os serviços de acompanhamento são poucos e tendem a serem cada vez mais sucateados, tendo em vista a aprovação da PEC 55, por exemplo.
O dia da visibilidade trans* não é, assim, apenas uma data comemorativa para nos lembrarmos que existem pessoas que não seguem o gênero que lhes foi imposto ao nascimento, mas sim um dia para lembrar toda a resistência desses homens, mulheres, travestis e pessoas NB (não-binárias) que sofrem violências diárias em todos os ambientes. É um dia para se lembrar que quem esteve a frente de Stone Wall foram mulheres trans e travestis empoderadas que naquela época eram presas e trancafiadas em manicômios. Paulo Amarante fala que a história da psiquiatria no Brasil foi a história da institucionalização, e nesse contexto diversas pessoas trans foram isoladas do convívio por um pensamento que persiste.
Está na hora de enfrentarmos essa realidade de forma coerente e acolhedora, por isso a Coordenação de Cultura da DENEM não poderia deixar esse dia passar em branco.