Esse texto é o segundo da série de artigos que visam explicar o atual contexto do Exame de Ordem para Medicina. Para saber do que se trata a proposta, veja o primeiro.
Garantir a boa formação de profissionais de saúde no país em um cenário de supostos “erros médicos” crescentes e expansão desenfreada de escolas médicas sem a devida qualidade são as principais justificativas para o atual projeto de Exame de Ordem que tramita no Senado (1). Assim, seria esperado que esse Exame tivesse potencial de diminuir os erros médicos e de induzir ou orientar melhorias nas instituições de educação superior (IES). Contudo, não é o que se verifica ao analisar a natureza de erros em Medicina. Ademais, analisando os resultados de outros exames nacionais para a melhoria da qualidade educacional, vemos pouca ou nenhuma evolução, acompanhados de prejuízos devastadores.
Primeiro, é necessário apontar que erros médicos são cometidos em sua maioria por profissionais com 15 anos ou mais de formação (2,3). Dessa forma, uma prova aplicada apenas a recém egressos não exerceria controle sobre o grupo de profissionais que mais comete erros. Além disso, como a natureza desses erros é geralmente de organização e de serviço (4), sua prevenção passa primordialmente por investimentos no SUS e qualificação da gestão. Logo, não há qualquer indicativo que tal prova protegeria a população brasileira de erros na assistência médica.
Em seguida, passemos a analisar a proposta da avaliação de regular a qualidade da educação médica. Para tanto, precisamos traçar o perfil de suas características para comparar com experiências prévias semelhantes. A prova consistiria de etapa única, avaliando competências éticas e cognitivas, além de habilidades profissionais. Seus resultados seriam também utilizados para atribuir conceitos de curso com ampla divulgação pública (1).
Diante dessas características, percebemos que a prova se assemelha ao Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ao Exame Nacional de Avaliação do Ensino Superior (ENADE). No caso do exame da OAB, que já ocorre há mais de 20 anos, sua implementação foi incapaz de frear a abertura caótica de faculdades de direito bem como de induzir qualidade na formação, atualmente contando com 85% de reprovação (5).
Em relação à experiência do ENADE, de acordo com os principais estudos de seus resultados, essa avaliação tem falhado na proposta de medir a qualidade e prover orientações ou recursos no âmbito do ensino superior (6,7).
Cabe mencionar também que o texto da proposta, além de citar a OAB como exemplo a ser seguido, indica experiências internacionais de avaliações de egressos do curso de medicina. Aqui precisamos destacar que tais avaliações são notoriamente diferentes da proposta de Exame de Ordem, pois contam com diversas etapas avaliativas mais longas e complexas e abordam competências não apenas cognitivas e éticas, mas também comunicativas e psicomotoras. Além disso, estão associadas a outros mecanismos de controle e orientação da educação superior (8,9), enquanto no Brasil esses mecanismos têm falhado em conter a expansão das escolas e controlar sua qualidade.
Ainda, é fundamental apontar que esses exames são de países com características sociais, econômicas, políticas e demográficas divergentes do Brasil, sendo que tais características de nosso país são centrais na ineficácia do ENADE (e outras avaliações que utilizam a performance de estudantes de classes e “fundos sociais divergentes”) em medir qualidade da educação superior (6,7).
Ainda assim, mesmo diante de tamanha imprecisão da proposta de um Exame de Ordem para medicina como solução para qualidade da formação médica, uma conclusão muito comum diante do cenário exposto é entender que a prova “pode não ser tão boa e ter muitos defeitos, mas mal ela não faz e temos que tentar alguma coisa”. Por isso, o texto final dessa série sobre Exame de Ordem vai explorar os muitos, intensos e catastróficos resultados educacionais e socioeconômicos de exames com as características propostas. Vamos explicar também os interesses de corporações e setores de nossa sociedade que se beneficiariam com esses resultados prejudiciais dessa prova.
Após essa análise poderemos iniciar uma série na qual apresentaremos as alternativas avaliativas que se aproximem mais desse objetivo. Elas existem, apresentam potencial resolutivo e já contam com alguns resultados positivos.
REFERÊNCIAS:
1 – https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento…
2- https://editora.unoesc.edu.br/…/anaisdeme…/article/view/8998
3 – https://repositorio.ufsc.br/…/…/123456789/119423/255485.pdf…
4 – http://www.scielo.br/pdf/%0D/jped/v78n4/v78n4a04.pdf
5- https://jus.com.br/…/a-politica-de-avaliacao-da-qualidade-…/
6 – http://www.anpae.org.br/…/Luciamariadeassis_GT2_integral.pdf
7 – http://periodicos.uniso.br/…/in…/avaliacao/article/view/2168