A expansão das possibilidades de atuação por meio da telemedicina a partir da proposta contida na Resolução nº 2.228/2019 do Conselho Federal de Medicina, com ampliação das formas de assistência, educação, pesquisa, prevenção e promoção de saúde – disfarçadas por premissas de suprir o acesso à saúde a pacientes que residem em regiões de difícil acesso, de escassez de profissionais, e de ferramenta para facilitar o atendimento médico – precisa ser questionada a quem e a quais motivos de fato irá servir. Abrir portas para a telemedicina, conforme pautado na resolução, é ampliar ainda mais a mercantilização da saúde, o superfaturamento do campo privado às custas da sobrecarga do trabalhador, da incerteza do bom atendimento, da educação médica e da precarização das políticas públicas de saúde.
A flexibilização de vínculos empregatícios a partir do taylorismo e a fragmentação da classe trabalhadora a partir da financeirização levaram a um contexto de desemprego estrutural e de crescimento do trabalho informal. Somado a isso, as reformas impostas pelos governos neoliberais culminaram na perda da seguridade social, dos direitos trabalhistas e de diversas conquistas alcançadas pela classe trabalhadora no século XX, levando a uma maior exploração – exploração essa que toma proporções ainda maiores em um país periférico na ordem mundial, como o nosso, o qual tem seu papel reforçado na divisão internacional do trabalho a partir da crise econômica e política mundial. Esse contexto de precarização do trabalho, somado aos avanços nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), culmina no processo de uberização do trabalho, cujos principais expoentes hoje estão nas empresas de transporte e alimentação, que fazem a ponte entre prestador de serviço e usuário deste, trazendo a premissa de um trabalho autônomo, dono de seu próprio tempo e trabalho, mas que na prática se submete a longas jornadas de trabalho, não contando com direitos trabalhistas, para conseguir se manter. Esse processo tem se expandido para outras áreas antes tidas como autônomas, como a saúde, tornando os trabalhadores desses setores mais vulneráveis a todo esse panorama precarizante.
Pensar a regulamentação da telemedicina passa necessariamente por pensar o impacto desta para o trabalho médico, mas também para o usuário. Nesse sentido, a prática vai na contramão dos avanços em relação às práticas de cuidado em saúde trazidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de 2014, pautadas no entendimento da determinação social do processo de saúde-doença e do direito à saúde, pois os pacientes perdem com o distanciamento imposto pelas TICs, não avançando nos princípios que norteiam nosso SUS: uma atenção à saúde integral, universal e equânime. Além disso, as TICs geralmente são desenvolvidas por países centrais, onde se localizam suas empresas-sede, e exportadas para países periféricos, reforçando a dependência e trazendo o risco de estratificação profissional, de acordo com a ordem, em médicos que controlam o processo e médicos mais técnicos e operadores. Ademais, a baixa segurança e a operacionalidade das diversas empresas que controlam as TICs, que vendem dados de usuários para outras empresas, precisam ser destacadas principalmente quando se afirma sobre os aspectos éticos, por colocarem em risco as normas do CFM pertinentes à guarda, manuseio, integridade, veracidade, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional das informações. A prescrição médica também representa perigo no que tange ao risco de falsificações.
Também cabe citar que experiências de outros países latino-americanos, como o México, na implantação de ações de telessaúde para a população, apenas reforçaram a desigualdade social e não promoveram maior acesso, como sua premissa. E no Brasil seria diferente? Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64,7% dos brasileiros têm acesso à internet, disponibilizada por poucas operadoras, e concentradas nos grandes centros urbanos. Tal qual o eixo de provimento emergencial de médicos do Programa Mais Médicos de 2013, que tinha a premissa de prover médicos para áreas carentes de assistência, mas que, de acordo com os estudos de Demografia Médica coordenados por Mário Scheffer, a concentração desses profissionais se manteve alta nas regiões já concentradas, como o Sudeste, e baixa em regiões com escassez de profissionais, como Norte, Nordeste e Centro Oeste. Conforme dito por Jessé Souza, em a Elite do Atraso, a inovação possível dentro de um mesmo paradigma é sempre superficial e nunca sequer toca o aspecto principal, ou seja, não adianta investir em tecnologia como medida paliativa, ainda mais entendendo as presentes dificuldade de acesso tecnológico e formação para inclusão da tecnologia no ambiente do trabalho, sem promover de fato política pertinente para o incentivo à interiorização dos médicos, com planos de carreira e investimento em infraestrutura e em políticas públicas de saúde nesses locais.
Por fim, tal qual com as outras plataformas mediadas pelas TICs, corremos o risco de um incentivo à expansão dos serviços privados que oferecem atendimento facilitado e mais barato – às custas da sobrecarga do trabalhador e da oferta de um serviço qualitativamente inferior – ao invés do incentivo às políticas públicas de saúde, que permitem verdadeiramente o acesso da maioria esmagadora da população brasileira à saúde, desresponsabilizando o Estado de prover algo que é direito do povo.
Por todo o exposto, temos crítica profunda a quais motivações agem por trás da regulamentação da telemedicina, entendendo todo o prognóstico ruim para o trabalho do profissional médico, o atendimento médico qualificado e o investimento em políticas públicas de saúde, levando a intensa precarização do público concomitante ao investimento pesado do capital estrangeiro em um atendimento facilitado, que irá ser provido nas regiões já concentradas, perpetuando desigualdades. Os interesses em jogo não são dos trabalhadores médicos, muito menos dos pacientes, mas sim das empresas que irão lucrar em cima. O uso das TICs na saúde apresenta grande potencial de servir ao mercado e não ao povo brasileiro, sendo assim necessário ampliar o debate sobre os verdadeiros interesses envolvidos na regulamentação da telemedicina.
PS.: A telemedicina é apenas um braço da telessaúde, a qual é muito mais abrangente e merece um estudo maior. Abordamos especificamente telemedicina no texto, mas quisemos fazer uma provocação à reflexão sobre a telessaúde.