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NOTA DAS EXECUTIVAS NACIONAIS DE CURSOS DA SAÚDE

(ENFERMAGEM, FARMÁCIA, FISIOTERAPIA E MEDICINA) SOBRE O

EDITAL nº 4/2020 DO MS

 

Dispõe sobre a convocação dos estudantes
da saúde à assistência à pandemia da COVID19.

 

O Brasil conta comigo, mas eu não posso contar com o Brasil: a precariedade das políticas públicas de permanência estudantil e a precarização dos profissionais de saúde

 

Hoje, dia 01 de abril de 2020, foi lançado o Edital de Chamamento Público para a Campanha “O Brasil Conta Comigo”, divulgada pela Portaria nº 492 de 23 de março de 2020 do Ministério da Saúde (MS). Esta campanha tem como objetivo chamar estudantes de Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina para o front de combate à Pandemia da COVID-19. Em contrapartida às 40h de trabalho semanais sugeridas, o Ministério da Saúde pagará ao estudante uma bolsa de R$1045,00 e dará uma bonificação de 10% nos programas de Residência Profissional (médica e multidisciplinar) do Ministério da Saúde, válida por 2 anos, além de certificação da atuação no combate ao novo coronavírus. Ainda que portarias não tenham o respaldo jurídico para obrigar as pessoas a trabalharem, a redação confusa do texto, numa primeira leitura, pode levar à interpretação errônea de que a participação dos alunos do último ano de Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia e dos alunos do internato médico (dois últimos anos da graduação médica) é obrigatória, com atuação nas áreas de saúde coletiva, pediatria e clínica médica. Além disso, as instituições de ensino poderão, segundo proposto e se assim julgarem oportuno, abater o tempo dedicado pelo discente a este Programa na carga horária dos Estágios Curriculares Obrigatórios previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos citados.

Ao inserir bolsas deste valor como oferta aos estudantes, o Ministério da Saúde os impele, covardemente, ao interesse em participar da campanha. As razões para isso se baseiam na realidade de que, para os estudantes da saúde, é quase impossível realizar estágios remunerados ou ter alguma fonte de renda para além de bolsas de pesquisa científica – que sofrem repetidos cortes do Governo desde a Emenda Constitucional 95; bolsas de permanência estudantil – as quais, em sua maioria, são valores baixos, que mal suprem gastos básicos de vida; ou dos trabalhos informais precarizados, na maior parte dos casos, fora da futura área de atuação do estudante. Para estes discentes, que, na melhor das hipóteses, estão acostumados a receber R$ 400,00 de bolsa permanência do Governo, o valor de R$ 1045,00 é apelativo e certamente bastante atrativo, pelas questões de desigualdade social apresentadas. Além disso, a Portaria traz menção à possibilidade de descontos em mensalidades de IES pagas, o que, entretanto, não é devidamente regulamentado pelo Edital, mas suficiente para atrair estudantes da rede privada

Sob esta perspectiva, é necessário salientar a conveniência em que consiste convocar estudantes com essa remuneração, em substituição à contratação de profissionais formados para atuar no combate à pandemia. Segundo a Federação Nacional de Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais, o piso salarial da categoria em Brasília, por exemplo, para uma jornada de 30 horas de trabalho, é de cerca de R$ 2.774,80. Por outro lado, a categoria de Enfermagem não possui nem piso salarial, nem jornada de trabalho determinada. De acordo com pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 10% dos profissionais da categoria de enfermagem enfrentam desemprego aberto. Em contraponto, apesar das categorias médica e farmacêutica não enfrentarem um massivo desemprego, as preocupações seguem persistentes quando referentes a outros pontos. A maioria dos profissionais médicos se concentram no eixo sul-sudeste do país, deixando boa parte do território nacional sem a quantidade de médicos recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1 médico a cada mil habitantes. Quanto aos profissionais farmacêuticos, boa parte está concentrada na região nordeste-sudeste, comprometendo também a quantidade de profissionais atuantes nas demais regiões do Brasil, algo extremamente preocupante diante das chances do uso irracional de medicamentos nesse período, principalmente em um país que está entre os dez maiores consumidores de medicamentos no mundo, de acordo com o Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Mediante o exposto, a contratação de um profissional habilitado demanda maior investimento em saúde pelo Governo. Para não efetivar esse investimento, o Ministério da Saúde opta, então, pela utilização de mão de obra barata através do recrutamento de estudantes. Embora estes já tenham algum acúmulo de conhecimento, ainda precisam desenvolver competências e habilidades essenciais à profissão, não estando, portanto, aptos ao exercício das atividades sem adequada supervisão – supervisão esta sabidamente prejudicada e incerta em um cenário de emergência em saúde pública, ainda que o Edital em questão desconsidere a concretude da realidade na qual os serviços estão se desenvolvendo.

A Portaria nº 492/2020, o Edital nº 4/2020 e a Medida Provisória (MP) nº 927/2020 são exemplos de como o governo Bolsonaro age para com os profissionais das áreas de saúde, precarizando e desvalorizando ainda mais suas formas de trabalho já historicamente negligenciadas. A MP citada, por exemplo, altera negativamente as relações de trabalho, permitindo a ampliação da jornada dos profissionais de saúde por até 24 horas e as reduções do tempo de descanso para 12 horas, ignorando mais uma vez os direitos trabalhistas, incluindo normas de segurança necessárias no enfrentamento à pandemia. Trata-se de uma medida extremamente prejudicial aos trabalhadores da saúde, em um momento crítico, em que faltam insumos básicos e Equipamentos de Proteção Individual em diversas Unidades de Saúde e hospitais de todo o Brasil – só em SP foram registradas mais de 800 denúncias por faltas de EPIs. Além disso, há de se considerar que o adoecimento dos profissionais, colocados em quarentena, pode agravar ainda mais a falta de recursos humanos, como já vem sendo constatado em outros países. Assim, o mínimo esperado do MS é a canalização de esforços para equipar as unidades e estruturar as condições de serviços, iniciando pela dotação orçamentária para a contratação de profissionais de saúde formados e registrados, os quais seriam verdadeiramente aptos ao combate à COVID-19.

Outro tópico que chama a atenção na Portaria e no Edital é a oferta de 10% de bonificação na seleção para Programas de Residência do Ministério da Saúde. Com a bonificação, sugere-se a participação discente de forma coercitiva através da “vantagem oferecida”, desconsiderando a desigualdade que essa “vantagem” provoca na formação dos estudantes, na própria segurança destes e na seleção dos Programas de Residência. Isso porque estudantes dos grupos de risco (portadores de doenças respiratórias e/ou imunossuprimidos) ou aqueles que convivem com pessoas deste grupo se veem frente a oportunidade de adquirir o benefício – convidativo, considerando a situação de vulnerabilidade social em que muitos vivem, mas para isso precisando colocar a si e seus familiares em risco. Também é importante salientar que grande parte dos transportes públicos estão paralisados, ficando a cargo dos estudantes seu transporte aos campos de estágio, não sendo previsto no edital custeio do transporte para os estudantes selecionados.  Além disso, a medida fere a isonomia dos candidatos nas seleções para a Residência, pois aqueles que não forem convocados ou não puderem desempenhar o serviço por quaisquer motivos não serão alcançados pela bonificação.

É importante ressaltar, ainda, que não há vínculo empregatício estabelecido para o estudante que aceitar participar da Ação do MS. O Governo Federal não se compromete a disponibilizar Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), tampouco fiscalizar o uso destes, transpondo mais essa responsabilidade aos serviços de saúde que se cadastrarem para o recebimento de alunos. Sabe-se que a realidade nacional atual é de escassez de EPIs em grande parte dos serviços públicos de saúde. Nesse cenário, colocar estudantes para atuar no front de combate ao coronavírus configura irresponsabilidade extrema, pois coloca em risco a saúde não só dos estudantes que estarão nos cenários de prática, mas de toda a população. O fato de não haver vínculo empregatício implica em acidentes de trabalho que não serão contabilizados como tal – muito possivelmente haverão vários estudantes contaminados durante a atuação, mas estes não terão os mesmos direitos de assistência dos profissionais registrados. Implica, ainda, em aumento da disseminação do vírus na sociedade por termos mais pessoas circulando como possíveis vetores de transmissão; atendimento não respaldado por Conselhos e precarizado para a população; e a abertura de precedentes para um cenário ainda mais precário para os profissionais da saúde, uma vez que a probabilidade de contratação de estudantes na pandemia antes da formação possibilita que o feito seja repetido mediante declaração de emergência por qualquer outra razão.

Reiteramos que, enquanto estudantes da área da saúde, convictos de seus compromissos éticos e confiantes nas habilidades adquiridas até o momento, dispomo-nos a colaborar com o serviço em âmbitos fora da linha de frente da assistência, visando, também, não impactar negativamente a totalidade dos anos letivos das categorias de saúde, indispensáveis para este momento. Assim, serviços telefônicos, campanhas de vacinação, redação de protocolos e fluxos, atividades de notificação e vigilância são cabíveis ao desempenho dos estudantes nesse momento de crise. Entretanto, defendemos que não seja utilizado para isso o confronto capitalista das remunerações discrepantes outrora colocadas pelo Governo.

É preciso considerar as recomendações da OMS, da comunidade científica mundial e do próprio MS sobre a importância das medidas de restrição à circulação de pessoas e a aglomerações. E, para que o isolamento social se efetive como instrumento de controle da transmissão, é necessário que medidas como a testagem em massa da população e a proteção dos profissionais de saúde sejam adotadas. Dessa forma, o que sugerimos é a contratação de profissionais das respectivas categorias de saúde, treinamento de todas as equipes, garantia da oferta e uso adequado de EPIs, estabelecimento de fluxo adequado de atendimento e segurança nos serviços de saúde e fortalecimento das ações de saúde do trabalhador, protegendo os profissionais que estão, corajosamente, na linha de frente de combate à pandemia, levando em consideração que havendo a real necessidade os estudantes podem ser chamados seguindo uma hierarquização, seguindo as orientações já descritas neste documento priorizando os estudantes dos últimos anos.

Os estudantes de enfermagem, farmácia, fisioterapia e medicina se colocam contra a mercantilização da saúde e, portanto, veementemente contra esta jogada do capital para angariar mão de obra barata em detrimento da valorização da classe trabalhadora. Defendemos que o chamamento público seja primeiramente por efetivação de selecionados em concursos públicos e contratos de emergência garantindo os direitos tanto dos usuários do sistema de receberem assistência adequada, quanto dos profissionais a acessarem a empregabilidade, bem como dos estudantes de receberem a devida formação técnica-assistencial, com a oportunidade completa de desenvolvimento de suas habilidades e competências – sem que para isso precisem escolher entre sua permanência estudantil e sua própria segurança.

 

REFERÊNCIAS:

  1. CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM. Cofen publica nota oficial sobre a Medida Provisória 927. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/cofen-publica-notaoficial-sobre-a-medida-provisoria-927_78379.html. Acesso em: 1 abr. 2020.
  2. SINDICATO DOS ENFERMEIROS DO DISTRITO FEDERAL. Os profissionais da saúde precisam de proteção: PELA REVOGAÇÃO DA MP 927. Disponível em: https://sindenfermeiro.com.br/index.php/2020/03/30/opiniao-os-profissionais-dasaude-precisam-de-protecao-pela-revogacao-da-mp-927/. Acesso em: 1 abr. 2020.

 

Assinam esta nota:

Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina – DENEM
Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem – ENEEnf
Executiva Nacional dos Estudantes de Farmácia – ENEFar
Executiva Nacional dos Estudantes de Fisioterapia – ENEFi

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