Tendências do Sistema de Saúde Brasileiro
na pandemia da COVID-19
Entre a Vida e o Lucro: Qual o modelo de Saúde para enfrentar a pandemia?
Em abril de 2020, uma notícia apontou que uma região pobre da cidade de São Paulo, a Brasilândia, registrou 54 mortes causadas pela COVID-19, de um total de 89 casos confirmados da doença. Em contraste, o Morumbi, região rica da capital paulista, contabilizou 297 casos confirmados, mas com um número de mortes significativamente menor: 7! [1]. Um outra matéria apontou que nessa mesma cidade, as mortes estão ligadas mais às áreas pobres do que àquelas com maior número de casos confirmados ou maior concentração de idosos.[2] O padrão não se restringe à São Paulo: das 20 cidades com maior mortalidade e incidência de casos, 18 estão no Norte e Nordeste, regiões mais pobres do país. [3]
Longe de serem explicados por mera predileção do SARS-CoV-2 pela pobreza e pelos explorados, os dados acima escancaram o caráter essencialmente de cunho social do adoecimento. Apesar de infectados pelo mesmo parasita, a forma como se dará a infecção, suas repercussões clínicas e, sobretudo, o desfecho da doença em sua evolução clínica, diferem substancialmente de acordo as condições de vida e trabalho da população – determinadas pela posição que se ocupa nessa sociedade; condições essas que encontram- se em queda livre, rumo à precarização, sobretudo para o enorme contingente de desempregados, trabalhadores informais e população das periferias. Para esses brasileiros, a morte está sempre à espreita: seja mantendo-se em isolamento, e assim perdendo a renda para garantir sua subsistência mínima ou quebrando a quarentena e contaminando-se.
Assim, o enfrentamento da pandemia e efetivação do isolamento, necessariamente, passam pelo asseguramento pelo Estado de políticas públicas que garantam: renda emergencial digna, estabilidade de moradia; direito a afastamento remunerado do trabalho, dentre outros direitos sociais, há muito perdidos nas contra reformas trabalhista e previdenciária.
Nessa esteira, considerando as diversas complexidades de cuidado que a COVID-19 pode demandar, sejam elas o controle de comorbidades prévias, o manejo de alta complexidade de casos graves, os serviços psicológicos e as orientações gerais sobre precauções etc., evidencia-se, novamente, a necessidade de um sistema de saúde inteiramente Estatal, acessível a toda a população, gratuito, e que ofereça as várias esferas de complexidade do cuidado com qualidade.
O Brasil, todavia, cada vez mais, distancia-se desse horizonte. Para além do franco processo de desmonte do SUS, a saúde tem se destacado como importante feira de negócios, por meio de renúncias fiscais, de subsídios à expansão desordenada do setor suplementar, dos planos e seguros privados de saúde; pela isenção de impostos aos grandes hospitais privados; pelas desonerações fiscais para a importação e produção interna de equipamentos e insumos biomédicos, inclusive medicamentos, e pela aprovação, no governo Dilma (PT), da entrada de capitais estrangeiros na área da saúde.
O efeito desse processo é sentido, não somente na pele, pela população cotidianamente, na medida em que o desmonte do SUS se reflete em redução tanto do acesso aos serviços de saúde de que necessita, quanto da sua qualidade.
O assalto ao direito à Saúde, todavia, está longe de ser uma peculiaridade do Brasil. Têm tido certo protagonismo no debate mundial de saúde, principalmente na última década, as formulações acerca da “Cobertura Universal de Saúde” (CUS), um museu de grandes novidades. Endossada por organizações chave do capitalismo, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Fundação Rockefeller e a Organização Mundial da Saúde (OMS), a CUS traz como principal mote “a garantia de que todas as pessoas obtenham serviços de saúde de boa qualidade quando assim necessitarem, sem que sofram danos financeiros em seu pagamento”.[4]
Utilizando como mera alegoria o termo “universal”, a garantia de saúde a toda a população está longe de figurar entre as propostas da CUS. Nas entrelinhas, ela propõe uma “proteção financeira em saúde”, a fim de evitar os gastos astronômicos desembolsados pela população que não dispõe de acesso gratuito à saúde no ato de utilização, em situações como sofrer um acidente, necessitar de cirurgia ou internação de emergência. De modo geral, se resume à quantidade de pessoas que possuem algum plano ou seguro, estando potencialmente cobertas – o que não se reverte, necessariamente, em acesso e utilização desses serviços. [5]
Na prática, essa “proteção” seria realizada pelo financiamento público de seguros privados de saúde, com enfoque na população de maior vulnerabilidade, os mais pobres – beirando uma caridade – disfarçando, assim, o velho método de escoamento dos recursos públicos, que discutimos anteriormente, para o setor privado de saúde e a ruptura com a perspectiva de saúde como direito. Assim, perpetua-se a esterilização dos investimentos em infraestrutura, tecnologia, força de trabalho e financiamento públicos, fatores preponderantes para a consolidação de um sistema público e estatal de saúde que garanta cuidado integral e acesso universal, despido do parasitismo das empresas privadas. Em contrapartida, produz-se o terreno fértil para a abertura de mercados dos planos de saúde, indústria de medicamentos e outros insumos.
Na América Latina, laboratório das mais diversas facetas da exploração capitalista, a lógica da CUS já opera de forma perceptível em dois países. No México – segundo o ditado, “tão longe de Deus e tão perto dos EUA” – os trabalhadores com carteira assinada são atendidos pelo Instituto Mexicano de Seguro Social. Os ricos, contratam serviços privados. Para o restante da população mais pobre e trabalhadores informais, vigora o “Seguro Popular de Saúde” (SPS), estruturado em 2003. Nele, os beneficiários recebem tratamentos para um grupo seleto de doenças, o qual, por vezes, não inclui suas complicações.
Assim, um paciente pode ser tratado para Câncer de Pulmão ou Linfoma, mas está descoberto caso a doença atinja a boca ou a laringe [11,12].
Fato é que, mais de uma década depois, cerca de 20 milhões de pessoas ainda permanecem sem seguro, mantém-se os altos gastos no ato de utilização – mesmo entre os beneficiários do SPS, sem indícios de melhoria da saúde da população, redução significativa das desigualdades, maior eficiência ou qualidade. [6]
A Colômbia, por sua vez, padece com um modelo semelhante, adotado em 1993. Como esperado, este levou à expansão do setor privado no asseguramento e na prestação de serviços, apresentando os problemas clássicos de planos de saúde, como negação de serviços, e altos gastos administrativos – quebrando a velha falácia de maior eficiência e rentabilidade da administração privada.
Como cereja desse caríssimo bolo, o modelo foi palco de diversos casos de corrupção, sendo que o maior desfalque da história do sistema de saúde colombiano foi realizado pela maior empresa prestadora de serviço (EPS) do regime contributivo (Saludcoop EPS) na década de 2000 – contrariando a velha tese de que a corrupção é um defeito inerente e particular do serviço público, uma das grandes bandeiras da ideologia liberal. [7]
Como dito acima, em meio à pandemia do novo coronavírus, os EUA e a política neoliberalista vanguarda de Trump dão uma aula ao mundo de forma assombrosa e didática sobre a contradição entre VIDA vs LUCRO. [14] Apesar da alta concentração de riquezas, com o maior PIB do mundo e tecnologias referenciadas no país, nos EUA a saúde não é um direito do cidadão como o nosso SUS, sendo a saúde norte-americana de cunho privatista, inflexíveis a mudanças por pressão tanto dos complexos farmacêuticos quanto das instituições privadas dos convênios médicos proporcionados por meio de seguros-saúde, sendo irrisório e ínfimo o acesso da população estadunidense a todo esse aparato de saúde que, além de caro, é racista [15].
Nesse contexto, em maio (2020) nos EUA, a política que pauta saúde em privilégios, escancara, além das altíssimas taxas de disseminação do vírus no país, a mortalidade que agrava, eterniza e sela os interesses de governos racistas, como o de Donald Trump. Assim, a COVID-19 explana a histórica disparidade racial e social norte-americana, sendo a maioria dos óbitos da população negra, hispânica e latina-americana, estes residentes das regiões metropolitanas dos EUA, sem acesso à saúde ou tampouco a direitos [14].
Ademais, os altíssimos custos de consultas e procedimentos somado a falta de acesso e/ou capital nesse raciocínio neoliberal de saúde, são tramas de dramas sociais cotidianos nos EUA. Desse modo, há um total de 27 milhões de pessoas que não possuem nenhuma cobertura de saúde e estão com a sua saúde à mercê na pandemia. Assim, além do diagnóstico positivo da COVID-19, os desassistidos podem receber como brinde econômico uma dívida, pelos gastos à saúde, de aproximadamente 34 mil dólares pelo tratamento da doença àqueles sem seguro-saúde nos EUA [8].
Porém, mesmo os “segurados” por planos de saúde são surpreendidos, frequentemente, por cobranças exorbitantes que não foram previamente negociadas, considerando a cobertura limitada de muitos planos [9]. O documentário “$ICKO – SOS SAÚDE”, lançado em 2007, aborda as mais variadas atrocidades vividas justamente pelos indivíduos que possuem planos de saúde, tais como a do trabalhador que teve de escolher qual dedo, dentre os dois amputados em um acidente, ele preferia reimplantar. Era tudo que seu plano cobriria [10].
No Brasil, os planos de saúde têm movido suas peças rumo à mercantilização da saúde. No governo golpista de Michel Temer (2016-2018), em consonância à CUS, são propostos os “planos acessíveis de saúde”, destinados “àqueles que não podem pagar”, e custeados pelo Estado [11]. No governo Bolsonaro, além de alçar ao Ministério da Saúde um de seus puro- sangues, o ex-presidente da Unimed Henrique Mandetta, as operadoras de planos de saúde colocam em xeque a saúde de milhões de brasileiros ao recusarem firmar compromisso com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de manutenção da assistência médica aos beneficiários inadimplentes durante a pandemia [12].
Em meio a isso, nos últimos anos, pulverizam-se pelo país as clínicas populares, que, em geral, oferecem consultas e alguns procedimentos a custos baixos para indivíduos que não possuem plano de saúde, lançando questionamentos sobre a qualidade do serviço oferecido e a precarização dos profissionais envolvidos [13].
Confira o documento completo: SUS e COVID-19 NO BRASIL – DENEM 2020
REFERÊNCIAS:
1) Notícia: Morumbi tem mais casos de coronavírus e Brasilândia mais mortes; óbitos crescem 60% em uma semana em SP. Acesso em: 08/05/2020.
2) Notícia: Covid-19: mortes se concentram nas áreas pobres de São Paulo. Acesso em: 16/05/2020.
3) Notícia: Casos de coronavírus e número de mortes no Brasil em 10 de maio. Acesso em: 16/05/2020.
4) Notícia: Cobertura Universal de Saúde: a nova aposta do capital. Acesso em: 08/05/2020
5) GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2018, vol.23, n.6, pp.1763-1776. Acesso em: 08/05/2020.
6) Notícia: México: a doença da saúde. Acesso em: 08/05/2020.
7) Cárdenas W.I.L. et al. Trajetória das relações público-privadas no sistema de saúde da Colômbia de 1991 a 2015. Cad Saude Publica. 2017, vol.33(supl. 2), pp. 1-16. Acesso em: 08/05/2020.
8) Notícia: Coronavírus: nos EUA, paciente precisa pagar US$ 34 mil com exames e tratamento. Acesso em: 16/05/2020.
9) Notícia: A ameaça do coronavírus nos EUA, onde milhões não têm licença médica nem saúde pública. Acesso em: 08/05/2020.
10) Moore, M. Sicko: $O$ Saúde. 2008. Acesso em: 08/05/2020.
11) Notícia: Governo Temer emplaca “planos populares” de saúde para beneficiar empresas. Acesso em: 08/05/2020.
12) Notícia: Operadoras de planos de saúde não assinam compromisso com ANS. Acesso em: 08/05/2020.
13) Notícia: Clínicas populares surgiram de deficiências do SUS e dos planos, diz médico. Acesso em: 08/05/2020.
14) Notícia: Coronavírus e a disparidade racial nos EUA. Acesso em: 24/05/2020
15) Notícia: COMO FUNCIONA O SISTEMA DE SAÚDE DOS ESTADOS UNIDOS? Acesso em: 24/05/2020
16) Notícia: EUA têm 96 mil mortos por covid-19 e quase 1,6 milhão de casos. Acesso em: 24/05/2020