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Privatização do Saneamento: Violência, Racismo e o Adoecimento do Povo Brasileiro No ratings yet.

Entender como ocupamos o espaço em que vivemos é fundamental para compreender os processos que constituem a nossa realidade diária: seja de trabalho, interpessoais, de saúde e doença. A cidade é resultado de um processo histórico, com uma série de especificidades onde o morador da capital e do interior experienciam esse espaço de forma distinta. O mesmo acontece entre os habitantes das mais diversas regiões do Brasil já que o processo de formação dos bairros, comunidades, favelas e de todos os espaços nelas contidos influenciam em como cada morador vai se relacionar com a cidade.

Isso vai se expressar nos tamanhos e condições de construção das casas; na distância trabalho-moradia; nas formas de acesso (ou falta de acesso) ao lazer e direitos humanos, como coleta de lixo, abastecimento de água, tratamento de esgoto, ou seja, no saneamento básico.

Se o processo histórico leva a diferentes formas de acesso ao espaço da cidade (e de toda a vida, que se dá nesse espaço), é evidente que ele vai interferir diretamente no processo saúde-doença de cada indivíduo. Por isso, o debate de direito à cidade e de como se dá o processo saúde-doença da população são fundamentalmente interligados.

Além disso, tal processo está longe de ser neutro. As diferenças de acesso ao espaço da cidade e às condições de vida proporcionadas por ele estão intrinsecamente ligadas à classe e raça. Dessa forma, o direito à cidade perpetua-se como realidade a uma ínfima parcela da população, enquanto que, para grande maioria, resta a negação desse direito básico e a segregação nas periferias e favelas. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2017 evidenciam esse contexto quando afirmam que 48% da população brasileira não tem coleta de esgoto e que 35 milhões de brasileiros não possuem água tratada.

As alterações no Marco Legal do Saneamento Básico aprovado em plena pandemia pelo Congresso Nacional incentivam e facilitam o processo de privatização – que já vinha se desenrolando – por meio de licitações, provocando, assim, o desmonte das companhias estatais que vão ter seus convênios finalizados.

Tal assunto faz parte de um pacote de contrarreformas que tem ganhado força nos últimos anos. Portanto, a obrigatoriedade da gestão privada do saneamento surge e se soma à reforma trabalhista, à reforma da previdência e ao avanço da privatização da saúde e educação como mais uma forma de ampliação dos lucros do setor privado frente a um período de crise. Mais uma vez, o lucro se coloca acima da vida.

Como se repete em todo processo de privatização, o discurso é o mesmo: “como o público não funciona, é necessário privatizar”. Essa premissa mentirosa oculta a verdade, evidente em exemplos nacionais e internacionais: o serviço público é propositalmente precarizado, para poder servir de fonte de lucro após sua privatização.

Isso se apresenta nacionalmente, com estados e municípios em que a gestão já é privada e não há garantia de universalidade, como a cidade de Manaus – que teve seus serviços de saneamento concedidos à iniciativa privada em 2000 e hoje apresenta o pior indicador de cobertura do país – e também em exemplos internacionais (como Paris, Buenos Aires e Berlim), que passaram por uma reestatização do serviço frente ao fracasso da gestão privada.

Com base nas experiências internacionais, a privatização compromete o fornecimento de saneamento em cidades menores e com pouca infraestrutura. E não há dúvidas que os povos tradicionais também sofrerão muito com o processo, já que nessas regiões há menor lucratividade, não despertando, dessa maneira, o interesse das empresas.

O projeto conta também com metas de universalização do serviço de saneamento que, se numa primeira análise parecem ser algo positivo, na prática servem apenas como forma de justificar a aprovação do projeto, ofuscando a sua centralidade, que é a privatização em si. A defesa da universalização do saneamento básico – histórica na luta pelo acesso à cidade no Brasil – não deve vir atrelada a um projeto privatizante.

A experiência do viver em cidade, historicamente determinada e a cada dia mais agredida pela privatização, tem uma relação fundamental com o racismo estrutural. Afinal, a formação das cidades e o acesso aos espaços urbanos na transição do século XIX para o século XX tem vínculo direto com o retorno dos negros escravizados libertos na Guerra do Paraguai e com o próprio processo de abolição no Brasil.

Nesse sentido, o povo negro ocupa historicamente espaços urbanos onde se adoece mais, se morre mais cedo, se passa mais horas no transporte público e não seria diferente com o acesso ao saneamento básico. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS, IBGE, 2018), apenas 54,7% dos domicílios resididos por pessoas pretas e pardas têm acesso simultâneo a serviços como abastecimento de água por rede geral, esgoto por rede coletora ou pluvial e coleta direta ou indireta de lixo. Em domicílios de residentes brancos, esse percentual cresce para 72,1%. Ainda, segundo dados oficiais da UNICEF Brasil, no país, cerca de 29 milhões de pessoas não usufruem de saneamento básico e 6,2 milhões não têm água potável, sendo a maior parte delas pessoas negras.

O Brasil é mundialmente conhecido pela sua vastidão de recursos hídricos. Porém, eles frequentemente são subutilizados devido aos seus altos índices de poluição e desperdício estrutural, gerando a perda de recursos econômicos e naturais. Diante disso, as populações desfavorecidas são as mais afetadas, pois estão, geralmente, relegadas a residir em áreas próximas do escoamento de resíduos como esgotos industriais, urbanos e depósitos de lixo. A realidade de vida dessas pessoas, então, consiste em um cotidiano de condições sub humanas, onde elas constantemente precisam lançar mão de estratégias como desvios de água precários para obter o mínimo desse recurso para a sua subsistência.

As comunidades residentes em áreas de intensa poluição hídrica precisam conviver com uma série de doenças e agravantes relacionados a falta de tratamento de água e esgoto.

Podem-se destacar diarreias, verminoses, protozooses, além de impactos psicossociais negativos, como a banalização das suas comorbidades: esses indivíduos passam a considerar normal o fato de viverem doentes. Segundo o IBGE, 289 mil pessoas são internadas por diarreias e doenças relacionadas ao saneamento, sendo 50% dos casos, crianças.

Diante disso, torna-se necessário repercutir o problema, informar a existência do mesmo, seus impactos e suas causas, e estimular o debate, pois é preciso tomar a questão do saneamento básico como algo construído por toda uma coletividade, e que, se não tratado, irá continuar a gerar consequências negativas.

Se o racismo é estrutural, as cidades nas quais vivemos são construídas com base nele. E é sobre essa estrutura, também, que se dá o processo de privatização do saneamento. O novo Marco Legal extingue o subsídio cruzado e pode elevar as tarifas desse serviço, agravando, assim, o acesso da população e dos municípios mais pobres a condições mais salubres.

Por isso, a DENEM denuncia o caráter violento, racista e adoecedor da aprovação do Marco Legal do Saneamento Básico.

Em meio à uma crise sanitária, a covarde aprovação do projeto de lei mostra – mais uma vez – para quem serve o Estado brasileiro, colocando os direitos básicos da população nas mãos de grandes empresas e reforçando sua posição permanente em colocar o lucro acima da vida.

CONTRA O NOVO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO!

ÁGUA NÃO É MERCADORIA!

 

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