SOLIDARIEDADE À POPULAÇÃO MANAUARA*
*Nota publicada oficialmente no dia 6 de fevereiro de 2021 no instagram da DENEM
A situação vivenciada em Manaus não é uma exceção, não é um acaso. É um projeto político bem definido, que tem potencial de repetição em outras cidades e regiões do país, escancarando que o processo de adoecimento da população se dá, sobretudo, de maneira determinada socialmente de acordo com a estruturação econômica e política do país e/ou localidade. É preciso definir isto para compreender corretamente o conjunto de eventos que resultou na barbárie ocorrida em Manaus.
A mídia burguesa não noticia com a mesma importância os acontecimentos do eixo sul-sudeste e aqueles ocorridos no Centro-Oeste, no Nordeste nem muito menos no Norte. O que chega a maioria da população é pouco e raso, principalmente por meios alternativos de comunicação. Por isso, dada a complexidade da situação, dividiremos a questão de Manaus em três posts.
Com 233.931 casos confirmados e 6.450 mortes registradas até o dia 19/01/2021, o Amazonas é um dos estados com pior situação no que diz respeito ao enfrentamento da Covid-19. Todavia, esse quadro é apenas a manifestação máxima de uma condição sistêmica de um Estado que há anos sofre com a negligência e descaso.
Historicamente, a população Amazonense é negligenciada, com um dos menores índices de escolaridade e mais de 70% da população na informalidade. Estes dados são antes da pandemia, ou seja, neste momento, apesar de carecer de dados específicos, sabemos que a situação agravou-se, com o desemprego em massa.
O governo do Amazonas presencia escândalos de corrupção há muitos anos, como em 2017, quando o governador José Melo (PROS) sofreu impeachment após as investigações que apuraram mais de 300 milhões em desvios de recursos destinados à Saúde. O governador interino foi o presidente da Assembleia Legislativa, David Almeida (PSD), que também esteve envolvido em casos de corrupção.
Para além disso, durante a atual gestão de Wilson Lima (PSC), mesmo antes da pandemia, já havia graves problemas na saúde pública, como a precarização do trabalho em saúde, atraso de salários dos terceirizados por 6 meses e sucateamento do SUS no Estado. Em 2019, Wilson Lima encerrou as licitações com as cooperativas de enfermagem intensiva que até então estavam vigentes no estado, concedendo licitação, agora, para uma nova empresa. O problema em si não foi essa mudança de cooperativas, mas sim que esta nova empresa não existia.
Com essa manobra, enfermeiros intensivistas devidamente capacitados foram retirados das equipes e não foram substituídos, uma vez que a “empresa” licitada não tinha funcionários. Além da precarização do serviço e da sobrecarga dos poucos funcionários restantes que estavam cobrindo bem mais pacientes e funções do que deveriam, ainda houve falta de EPIs e insumos básicos, como luvas e máscaras, que já precedia a pandemia, sendo agravada por ela.
A pandemia de COVID-19 não originou nenhuma crise, apenas agravou todas as contradições existentes no nosso modo de produção. Para os trabalhadores, principalmente os pobres e desempregados, a alternativa é depender da sorte, enquanto os grandes empresários (que muitas vezes nem moram no estado), podem facilmente sair do estado ou até do país para evitar o colapso que sabidamente viria.
É imperioso destacar que a doença não acontece no vácuo, pois tem profunda relação com fatores sociais, econômicos, políticos e culturais, que são, conjuntamente, determinados pela organização social dos meios de produção, o capitalismo. Nesse sentido, a barbárie ocorrida no estado do Amazonas, e também em outras regiões pelo país, com a chegada da pandemia não se dá, meramente, a partir das características biológicas do vírus, mas sim de sua interação com uma estruturação social que prioriza os lucros em detrimento das vidas. Assim, as esferas governamentais não asseguraram aos cidadãos condições de um possível isolamento.
No estado, surgiu, no final de 2020, uma mobilização do comércio local, também desassistidos de políticas que garantissem as condições materiais para a manutenção do lockdown, levando à reabertura do comércio. As aglomerações e demais situações que ferem as medidas sanitárias de prevenção à COVID-19 não foram controladas pelos governantes, que estavam alinhados à postura negacionista promovida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Hoje, compreendemos que a saúde é determinada socialmente a partir do sistema produtivo em que os indivíduos se inserem, ao estabelecer as condições em que suas vidas são produzidas e reproduzidas.
Dessa forma, com um governo federal omisso, que se exime da responsabilidade sobre o estado de calamidade da região, ao transferir a culpa para as esferas municipais e estaduais, fez com que o Amazonas seguisse exatamente o que o presidente e o empresariado queria, dada a necessidade de manutenção dos lucros, resultando numa pandemia sem o mínimo distanciamento social e com “tratamento precoce”. Importante destacar que de acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan Americana da Saúde, OPAS, não existe, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.
No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. O “Kit covid” (hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, ivermectina e zinco) não foi distribuído nas unidades públicas de saúde, mas a maioria da população seguiu as orientações de Bolsonaro, buscando por conta própria tais medicamentos. Essas pessoas que adoeceram, apesar de terem seguido as indicações feitas pelo presidente e pelo Ministro da Saúde, desmentem o argumento de que são culpadas de sua própria doença por não terem feito o “tratamento precoce” tão defendido por essas duas lideranças nacionais – inclusive em transmissão ao vivo na última semana, enquanto Manaus vivia crise de oxigênio nos hospitais.
Além disso, após a primeira onda, o governo do estado – influenciado pelo Governo Federal – adotou uma postura de completa negligência com relação à pandemia, tendo inclusive aprovado a abertura de escolas municipais, mesmo sob protestos do sindicato de professores. As manifestações contra as ações permitidas pelo estado sofreram violenta repressão policial sob ordem do próprio governador.
Nesse contexto, Manaus se tornou um cruel exemplo de como a determinação social atua sobre o processo de adoecimento da população. Sem as devidas medidas de controle da pandemia, seja a nível estadual, seja a nível federal, Manaus tornou-se um dos epicentros da pandemia no Brasil. Apesar do Governo Federal há meses ser enfático com o número de curados, para diminuir a gravidade aparente da pandemia, Manaus e outras capitais do Norte estão sendo, infelizmente, um exemplo do porquê a imunidade de rebanho só deve ser considerada para vacinações, não para infecções em massa.
O tratamento precoce incentivado não funciona, os tais curados estão tendo sequelas diversas, não temos leitos suficientes em algumas cidades e facilitamos a produção de mutações no vírus, o que torna ele capaz de infectar inclusive os curados e sequelados, supostamente imunes.
Nem se salvou a economia, nem se salvou a vida da população, que repetidamente se infecta Manaus a fora. Porém, os lucros do empresariado permanecem intocáveis.
A crise do oxigênio em Manaus não foi um acidente, uma tragédia ao acaso. Foi e está sendo um crime contra a população manauara, e com autores muito bem definidos. O negacionismo do Governo Bolsonaro-Guedes-Pazuello é apenas um dos inúmeros sinais da política genocida que impera no Brasil e escolhe quem vive e quem morre às custas do dito “salvamento da economia” no atual enfrentamento da Covid-19.
É efeito da lógica liberal em que vidas estão abaixo do capital, sacrificando trabalhadores e trabalhadoras diariamente no Brasil. Conforme detalhado nos posts anteriores, a saúde não é apenas influenciada por um ou outro determinante social. Ela é determinada socialmente, segundo o modo de produção vigente.
O lugar que se ocupa no mercado de trabalho e de consumo traz mais ou menos possibilidades de modificar as causas de adoecimentos e mortes. Para os trabalhadores, principalmente num estado de maioria em informalidade, as possibilidades, seja de cuidado ou de tratamento, são bastante restritas.
Já a burguesia, que em sua maioria nem mora no estado que explora, ao ver a crise chegando, não tem dificuldades para sair do estado ou até do país em busca de sua saúde. Manaus e outras capitais do Norte que também estão cursando para uma crise similar não estão passando por exceções, mas sim por projetos políticos de genocídio. E projetos assim não podem mais existir, os lucros não podem mais ser prioridade em detrimento das vidas do nosso povo.
Antes mesmo da tragédia estampar as manchetes do dia 14 de janeiro, já era de conhecimento dos governos federal e estadual e da empresa responsável pelo fornecimento ao estado a falta de oxigênio – pelo menos 4 dias antes da crise eclodir. No pico da pandemia em 2020 a demanda por oxigênio em Manaus era de 20 mil metros cúbicos. Em janeiro de 2021, saltou para 70 mil. A empresa White Martins, que fornece oxigênio para os hospitais da capital, consegue produzir 28 mil metros cúbicos de oxigênio. A alta demanda foi gerada por uma nova onda que poderia ter sido prevista e evitada. O governo do Amazonas admitiu, por meio de nota, que a falta de oxigênio ocorreu “por conta dos elevados números de internações de pacientes com covid-19 no mês de dezembro de 2020” e pela “alta considerável nos primeiros dias de janeiro de 2021”.
Enquanto isso, o governo federal continuava insistindo em “tratamento precoce” (e ineficaz) com o “Kit Covid” e suspendia o auxílio emergencial, e o governo estadual insistindo na reabertura do comércio e mitigando as tentativas de isolamento social. A suspensão do auxílio é ainda mais grave na capital amazonense quando se lembra de seu altíssimo índice de informalidade. Entre os dias 11 e 13 de janeiro, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, esteve em Manaus e admitiu que estava ciente da falta de oxigênio, mas que não podia fazer nada a respeito.
A crise eclodiu no dia 14, quando o estoque de oxigênio acabou em diversos hospitais de Manaus, e pacientes internados por covid-19 morreram. O Ministério Público do Estado apura a quantidade de mortes. Pelo menos 235 pacientes foram transferidos para outros estados.
No ápice da crise, as aeronaves de carga brasileiras que seriam responsáveis pelo transporte de oxigênio até a capital do Amazonas encontravam-se indisponíveis, pois foram enviadas em caráter militar aos EUA. A ajuda para o povo manauara também veio de mãos repudiadas incessantemente pelo bolsonarismo: a vizinha Venezuela enviou 136 mil litros de oxigênio à rede de saúde de Manaus.
O presidente continua sustentando a narrativa de que suas ações são limitadas pelo STF e isentou o governo federal de responsabilidade pela crise de Manaus, mesmo que esse falso argumento já tenha sido refutado.
No dia 29/01, a Polícia Federal abriu um inquérito para avaliar a omissão de Pazuello sobre Manaus, porém, enquanto isso, mesmo que a mídia burguesa tenha parado de noticiar, as mortes na capital amazonense seguem frequentes, sendo prevista ainda em outras partes do estado e em outros estados, como Rondônia e Roraima.
Em face à omissão do Governo Federal e Estadual, ONGs e a população têm se apresentado enquanto mediadoras da situação, arrecadando e distribuindo doações com o intuito de minimizar o impacto da falta de insumos.
Cabe ressaltar, porém, que, apesar do efeito positivo dessas ações a curto prazo, a atuação das ONGs é limitada, tendo em vista que constituem uma ação assistencialista e pontual, não tendo em si um projeto de mudança social, apenas de paliativo das mazelas criadas pelo sistema.